Primeiro ato: pela segunda vez ele passa ao meu lado e finge não me conhecer. Contrariamente a outras ocasiões um comichão percorre toda a extensão da minha língua, materializando a vontade imensa de dizer "boa tarde". O mesmo comichão que certamente acentuaria o ponto de ironia no final da frase. Engulo o cumprimento como quem toma um remédio amargo e sigo o script, fingindo não conhecê-lo também. Horas depois, quando muito bem acomodada na cadeira do restaurante, chegaria à conclusão de que fora melhor assim.
Tento me distrair com a conversa das minhas amigas. Elas falam trivialidades e tomam chopp; eu me limito a rir quando necessário. Dou-me o direito de ausentar da realidade neste exato instante. A presença dele me perturba. Não consigo pensar em outra coisa a não ser ir até sua mesa, enfiar o dedo em sua cara e perguntar "não vai falar nada não, babaca?". Como é que ele consegue ficar calado? Como consegue fingir que não aconteceu nada? Não, não é a presença dele que me incomoda; é o seu silêncio.
Segundo ato: a peça ganha personagens coadjuvantes. Minhas amigas percebem a alteração no meu estado de espírito (eufemismo para dedos tamborilando freneticamente sobre a mesa) mas fingem nada ver. Elas sabem que ele está aqui. Sabem da nossa história. Sabem que se estou calada é porque não quero ouvir comentários. E por saberem tudo isso, simulam a mais cínica ignorância dos fatos. Melhor assim. Não olham para mim, não tocam no meu nome, não pedem minha opinião. Melhor assim. Honradas donzelas num baile à fantasia, cada qual com sua máscara sorridente - por sinal um pouco amarelada, devido ao uso constante.
Ele? Continua a fingir. Continua a se calar. Como pode? Na minha cabeça fervilham milhares de pensamentos. Como pode? Minhas mãos demonstram a inquietude que me abate. Como pode? Meu estômago quase grita (gritaria, se fosse possível) de dor. Ele? Impassível, inabalável, frio. Como se não assistisse àquele bizarro espetáculo de silêncio, de verdades e mentiras não ditas. Como pode? Como?
Maldita gastrite nervosa! Maldita! Maldita! Maldito. Dor.
Minha boca está seca. Peço uma dose de pinga e uma garrafa de guaraná. Sob o olhar tenso das amigas tomo a pinga num gole só. Sabendo das minhas limitações fisiológicas sorvo o líquido doce, que sobe pelo canudo lentamente, dissipando o sabor forte do álcool. Não gosto de pinga. Mas precisava tomar. Questão de sobrevivência. O efeito foi quase prazeroso: enquanto o calor da pinga subia até o cérebro, o guaraná descia gelado pela garganta. Lentamente.
Terceiro ato: penso em tudo o que aconteceu. No suposto "retorno". Não fora um retorno, mas uma série de pesarosos desencontros. Dolorosos desencontros. Necessários, sim, e nem por isso menos desgraçados. Enxerguei, em poucos encontros, tudo aquilo que tentei ignorar durante quase dois anos: o homem que eu amara não existia. Não mais.
Penso no dia do "retorno". E uma leva de palavras não muito bonitas se põem à beira da minha língua, prontas para serem cuspidas num escarro ácido de raiva. Não, não quero dar um vexame aqui. Levanto da cadeira e bambeio, mas continuo em pé e vou até ao banheiro. Minhas amigas me olham mas continuam a farsa.
Entro no banheiro, sento em um vaso sanitário qualquer, tranco a porta. Acendo um cigarro e dou uma tragada profunda. Uma fisgada no estômago me faz lembrar da gastrite, mas já que estou fingindo tanto por quê não fingir que não dói?
Novamente milhares de pensamentos desordenados me invadem. Dou outra tragada e começo a colocá-los em ordem. O primeiro da lista: vou dizer tudo o que está entalado na minha garganta, e vai ser hoje. Os seguintes se misturam um pouco, mas possuem uma matriz em comum: o quê dizer. "Você me usou. Seu canalha. Onde está todo amor que você dizia existir? Isso tudo era vontade de me comer? Espero que tenha valido a pena, pois não haverá outra oportunidade. Seu fraco. Faltou coragem pra conversar comigo? Faltou coragem para me encarar de frente? Não sinto mais nada por você, idiota. Se bem que sinto; pena. Você não tem hombridade. Seu fraco. Você me usou. Me sujou. Mentiu. Você nunca vai amar alguém. Você não sabe o que é amar. Você não me ama. Eu não te amo. Tenho pena de você. Moleque falso. Fraco. Fraco. Fraco."
Toda a raiva e desprezo vêm subindo do estômago, passam pela garganta, e chegam à boca. Abro a porta correndo e coloco toda a dor para fora, junto com o que havia comido nas últimas horas.
Ato final: a tormenta passou. Me sinto segura o bastante para sair do banheiro e encarar meu algoz. Sei que vou acabar chorando mas não importa; ele vai escutar tudo o que eu tenho a falar, palavra por palavra. Chego no salão do restaurante e procuro sua mesa. Onde ele foi parar? Sinto, então, uma mão em meu ombro. E escuto a voz de uma das meninas: "Ele foi embora, moça."
Um mundo cai sobre minha cabeça.
Sento junto a minhas amigas, disposta a falar tudo o que estava sentindo. Elas me olham nos olhos, tentando medir o tamanho da minha dor. E de repente não havia mais dor. Não havia qualquer resquício de dor! Uma estranha leveza se apossa de mim, e começo a sorrir. Como não pude perceber como aquela cadeira era confortável? Peço um sorvete de chocolate com calda de morango para o garçom. "Nossa, me bateu uma fome terrível agora! Vocês não vão comer?", e pergunto, em tom de chacota, se ainda estou descabelada.
Silêncio.
Elas não entenderam. Mas não importa. Muito pouco importa agora além da calda de morango.
É assim mesmo...por mais que a gente queira e faça nem sempre as coisas dão certo...num depende só da gente...eu aprendi isso...ás vezes, por mais que a gente lute não há uma contrapartida do outro lado...mass sei lá, talvez o melhor seja seguindo em frente...nós num somos perfeitos mas temos qualidades ...você por exemplo já tem o talento de se expressar por suas próprias palavras o que sente eu simplesmente num compartilho do mesmo dom então só pego meu violão e toco as músicas do álbum mais triste dos Smashing Pumpkins da maneira mais lenta possível...como se cada acorde, cada palavra batesse forde e de maneira dolorida...mas é assim...vamos ver o que o futuro nos espera...
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