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Espuma e vinho seco

Helena encheu a taça, diminuiu a intensidade da luz e sentou na cadeira de balanço. No toca-disco, um antigo vinil de tango argentino; o aparelho de cds estava perfeitas condições, mas alguma lembrança antiga -- talvez anterior até ao seu nascimento -- a conduziu ao empoeirado toca-discos. Lentamente a música foi ocupando todos os cantos da casa, todos os cantos de Helena. "Era a Vó Cilica que gostava dessa música, não era?" A lembrança da avó sobreveio como um soco no peito, prensando a garota na cadeira, tão intensa que era quase possível sentir o cheiro do talco que a velhinha gostava em sua própria pele.

Saudade. Seria mesmo possível que estava sentindo saudade da avó? Já haviam se passado meses e ela não sentira nada, nenhuma tristeza, nenhum vazio. Agora este aperto no peito, esta vontade de chorar... "Coisa mais sem sentido! Deve ser culpa da música". Evitando pensar demais, Helena desliga o toca-discos, toma um grande gole de vinho e começa a preparar o banho. Enquanto espera a banheira encher ela salpica sais na água, ajeita as toalhas, fecha a porta do corredor.

Um vapor perfumado inunda o cômodo; enquanto se despe em frente ao espelho, ela observa os contornos de seu corpo no vidro embaçado. Tinha o porte físico do pai, os olhos da tia, o sorriso da mãe... e alguma coisa da avó. Alguma coisa. Por mais que tentasse negar, bastava mirar-se por alguns minutos que a semelhança saltava aos olhos. Se sorrisse, então, era impossível não reconhecer D. Cilica! Fato bastante contraditório, posto que a velha quase não sorria. Era como se Helena sorrisse pela avó. E ela não queria sorrir... Secando as poucas lágrimas que rolaram pelo rosto, Helena liga o rádio no último volume e pula dentro da banheira, espalhando água por todos os lados.

"I don't wanna hear, I don't wanna know..."

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